Feliz ano escolar (e o que importa no fim do dia)


À medida que Agosto acaba o meu coração vai afundando. É assim desde que sou mãe de crianças em idade escolar. Acho que o coração deles também vai afundando, mas vão buscar aquela alegria que têm dentro deles, aquele bem-querer que têm face à vida, mas isso não serve de boa sorte. Que é também disso que falamos, de melhor ou pior sorte nos acasos. Em relação às escolas, trata-se de melhor ou pior sorte com os professores e os colegas que nos calham. Muito mais do que dos programas de ensino absurdos que nos governam, falo de pessoas.

Deixo que eles façam os seus planos, tento ajudá-los a que sejam planos reais, com muito cuidado para que estes não se desfaçam em mil pedaços. Fazemos listas do material que sobrou do ano anterior, encomendamos os livros, fazemos expedições à baixa para tornar os rituais mais próximos da nossa comunidade. Eles deixam-me as mochilas e as sapatilhas preferidas na lavandaria, certificando-se se ainda vai a tempo de secar. Encetam aquele lápis bonito que andavam a guardar para a escola. Distribuem os cadernos por disciplinas, tentando encontrar algo na capa que se associe ao tema da disciplina.

Para mim, é como se passasse esses dias sentada à mesa (que fica no centro nevrálgico da nossa casa) com uma chávena de café na mão, paralisada. Inspira-me a paixão deles pela vida, mas aprendi a ser medrosa. O sofrimento dos filhos é daquelas coisas que nos manda ao tapete de forma implacável e a pessoa habitua-se a tremer de medo, quando há uma dimensão na sua vida que transporta em si um grande potencial de sofrimento para os filhos.



Fast forward: e lá fomos, hoje, às apresentações nas respectivas turmas. Bastam duas ou três horas na escola para perceber que a vida não se deixa comover com o bem-querer de uma criança. E lá se vai a primeira noite de sono desde que o ano lectivo anterior findara.

Tenho um documento começado a escrever, chama-se Manual para Neutralizar os Efeitos Nocivos da Escola. Assim mesmo, batizei-o num dia dorido.

Não me entendam mal, não quero destruir a escola, aliás, eu adorava a escola quando era miúda. Nem tenho nada contra quem está satisfeito com ela. Apenas, aprendi a ter medo dela depois de me tornar mãe. Tive o meu primeiro e único ataque de pânico numa escola, numa situação relacionada com um dos meus filhos. Já vivi semanas inteiras com o estômago revirado. Cometi erros a tentar de tudo para que tudo fosse melhor, mas nada pode ser “assim tão” melhor quando falamos de um sistema que simplesmente não concede lugar à compaixão.

Vão-nos valendo as pessoas que, dentro dele, remam contra-corrente com todas as suas forças.

Mas é um bicho muito grande, muito forte, muito, muito forte.

Antes de ser mãe, jamais me questionara sobre isto, e sei que, para a grande parte das pessoas é um absurdo criticar aquilo que critico: a organização dos alunos por turmas na forma como é feito, a segregação por idade, a avaliação como é feita, o divórcio com a natureza fisicamente activa da crianças (aliás, o divórcio com a natureza, ponto), como a disciplina está regulamentada através do sistema “Vigiar e Punir”, etc.

Junte-se a este cocktail um corpo docente em que  bastam dois professores que, entre outras coisas, profiram frases como  “Tens sorte com os pais que te calharam” dirigindo-se a um aluno (estamos a falar de crianças que foram adoptadas) ou que dizem aos pais (frente ao aluno) “Admiro-a muito, não teria tido a coragem de fazer o que fez”, referindo-se à adopção. E tudo isto é muito desculpável, porque as pessoas nem sequer fazem por mal, até achavam que estavam a elogiar as pessoas, não é? Não. Porque quem se propõe a ser educador profissional tem de ser isso: educado. E não estou a falar de polidez, estou a falar de educar a sensibilidade, de educar a auto-avaliação do que se diz (Como? Porquê? Para quê?).

E o que fazer com isto? Exigir mais formação para corpos docentes e restante pessoal? Talvez, sempre ficava algo a ecoar.

As ideias que me ocorrem são sempre as mesmas. A primeira é fugir para Marte, mas desisto logo. Depois, penso em ir para a província, fantasiando que fora de uma cidade grande estamos livres da pressão das notas, dos professores que dizem que as notas não são o mais importante e cinco minutos depois lembram os alunos que é hora de pensar nas médias para a universidade (ainda longe do secundário), da competitividade dos colegas (e alguns pais, já agora) cujas boas médias não chegam e têm de as comparar com os restantes e, claro, enxovalhar quem não alcança o seu nível, perdão “nível”. A província ainda não ganhou esta luta de “ses”. Já pensei no ensino doméstico, que pratiquei por um ano com um dos meus filhos em condições muito particulares – para o fazer no conceito em que acredito teria de mudar toda a estrutura da nossa família e também ainda não encontrámos esse lugar. Pelo meio, pensa-se em tudo e mais alguma coisa, vão-se ponderando eventualidades de mudanças de escolas ou de turmas, mas nada que se concretize por ser tão parca a possibilidade de vir a ser diferente.

Estou a exagerar?

Acham mesmo que a escola acredita na curva de Gauss? Ou não se trata de acreditar ou não, mas de simplesmente atirar para canto quem fica na extrema esquerda da curva? E não pensem que estou a falar de aproveitamento escolar, também conhecido por “resultados de um método de avaliação obsoleto”. Falamos, de forma geral, de crianças que vão à escola para aprender e conviver, mas cujas narrativas não lhes deram as ferramentas necessárias para poder fazer essa coisa disforme de forma linear: comportar-se bem. Estamos a falar de adopção, certo? Portanto, não me levem a mal se não estiver muito disponível para ouvir os vossos “Ah, mas olha que isso não é só na adopção, o meu filho nasceu de mim e também blábláblá”.


Não me levem a mal, digo aos meus amigos, mas não confundam isto: crianças que sempre souberam que eram amadas e crianças que talvez ainda tenham dúvidas de que o pior já passou e que, hoje, são amadas.

Não confundam, ponto.

Agora tentem dizer isto na escola. Só o facto de cogitar que se tem de dizer à escola já prova que ela não está preparada para todos “não obstante”. Há pessoas que se compadecerão, claro que sim, mas o sistema não deixa que grande coisa aconteça depois disso.


Porque os professores têm de cumprir metas e há regulamentos que regimentam a disciplina. E há gabinetes que, supostamente, são de mediação disciplinar, mas funcionam como uma ameaça – se não te portas bem vais para o gabinete de mediação disciplinar. Pumba, deixa de ser isso da mediação e passa a ser um castigo, cujo efeito pedagógico é nulo. A cereja sobre o topo do bolo é quando nos lembram que há prémios de mérito com um “mas”: quem tiver uma ida, umazinha que seja, ao tal gabinete, que supostamente medeia, ganha como castigo não poder receber prémios de mérito. Sempre que me lembram disto no início do ano lectivo, fico a pensar no absurdo da situação hipotética do aluno que faz uma evolução comportamental exemplar, mas que se vê impedido do prémio de mérito porque a lei prefere olhar para o seu passado ao invés do seu presente. Agora imaginem o peso disto numa criança que foi adoptada. Bru-tal.

Não sei se devo continuar. Sinto que ando sempre a chover sobre o molhado.

Bastam duas ou três horas na escola para perceber que a vida não se deixa comover com o bem-querer de uma criança. E lá se vai a primeira noite de sono desde que o ano lectivo anterior findara. E dá-me para escrever este nó que tenho na garganta.

Porque é disto que falamos, de sofrimento. Às vezes, fantasio que dou um cartão daqueles como do Monopólio “Você está livre da prisão” aos meus filhos, mas a dizer “Tu estás livre de mais sofrimento”, nem que fosse do sofrimento de ter de lidar com a implacabilidade da escola que temos. Nem que fosse “Tu estás livre de mais rejeição”.
Porque é disto que falamos: da rejeição dos que estão na tal extrema esquerda da curva de Gauss.

Teria sido bonito escrever um texto muito positivo, com desejos de entradas com o pé direito, mas entrei logo com os dois, não foi? É que, hoje foram só duas ou três horas, mas já foi o suficiente para duas situações nos deixarem sem sono e sem filtro.

Quaisquer sensibilidades feridas pelas minhas palavras, de pessoas ligadas à escola, terão de vir acompanhadas de um momento de reflexão e humildade, focada nas narrativas de milhares (quantos são?) crianças institucionalizadas, acolhidas e adoptadas - que mereceiam mais, muito mais de todos nós.





Esta foto foi tirada a caminho da escola:
- Ah! Tão lindo, mamã!
- O quê?
- As nossas sombras de mãos dadas.



Olho para ela e sei que esta criança merecia estar noutro lugar da infância. O meu coração afunda mais um pouco.

Penso nos vários amigos que são família através da adopção e com quem a escola não tem sido meiga. Famílias foram transformadas pela escola e fico para aqui num ataque de “idade dos porquês”.





















Olho os murais cheios de mensagens de colaboração mútua e sobre o bullying, em como o que interessa é aprendermos a ser bons seres humanos e que as notas estão em segundo plano. E o ano começa e logo esqueceremos isto tudo. Porque há programas a cumprir, porque os alunos/filhos não estão a acompanhar as expectativas de resultados, deixamos de estar atentos a um comentário que se faz em casa sobre um colega que incomoda toda a gente e diz-se “hm, hm, pois, deveriam disciplinar esse aluno” ao invés de “e sabes porque é que se comporta assim?” ou questionar-se sobre como se compõe uma lista de convidados para uma festa de aniversário, ou, pior ainda, será que aquela criança vai ter alguém na sua festa?
Já se tentaram colocar na pele da mãe da criança cujos meninos não compareceram na festa de anos?

Como se gerem expectativas de uma criança que só quer ser aceite? Como se neutraliza o efeito de tanta rejeição?

Há uma dose de capacidade de relativização que provavelmente se estarão a questionar se usamos disso cá por casa. Usamos. Mas não chega para que estas palavras não nos brotem logo no primeiro dia de escola.

Uma grande amiga tem esta teoria: a escola tem de ser log in – log out. Os miúdos vão lá, aguentam e depois esquece.
Há quem opine e diga que a mudança de escolas é pernicioso porque os miúdos têm de aprender a permanência e a capacidade de enfrentar a realidade. Há quem opine e diga que se deve fazer mudança de escolas até acertar.

O texto vai longo e sinto que provavelmente só vai atiçar reacções primitivas à crítica, mas sou mãe através da adopção o que quer dizer que tenho as costas muito largas. Fui pouco clara nalguns pontos a tentar guardar um mínimo de privacidade, embora tenha escancarado aqui o meu coração. Quero deixar uma nota tão positiva quanto possível ao acabar o texto. Partilho convosco como vou lidando com isto.

Como disse acima, já tentámos muitas coisas, não há soluções milagrosas.

A minha receita muito humilde e falível é esta:

- No fim de cada dia, faz questão que o teu filho vá para a cama com a certeza de que é amado. Obriga-o a dizer-te que acredita que o amas com todas as tuas forças.

- Ajuda-o com os rituais de novo ano letivo, mas sem grandes festas, cuida das suas expectativas.

- Conversa com ele, explorem emoções e sentimentos. Se for necessário, usa livros, papel e caneta. Escreve o nome de sentimentos e ajuda-o a identificá-los.

- Partilha os teus sentimentos e como lidas com eles.

- Ensina-lhe a relativização.

- Ensina-o a ser consciente de que há dias em que virá eufórico da escola, outros dias em que “foi tudo normal” e outros ainda em que, ao invés de analisar o que está a sentir, a melhor solução será o log in – log out

- Explora técnicas de relaxamento com ele

-  Sugere-lhe que leve sempre algo que o conforte na mochila – nós usamos um coração que todos os membros da família têm sempre consigo nos porta-moedas

- Sugere-lhe que leve sempre algo não-tecnológico (mesmo que também tenha) que sirva de entretenimento na mochila. Pode ser um livro, um quebra-cabeças, uma revista de música, etc.

- Confirma que, mesmo que não tenha um telemóvel, tenha uma forma de te ligar de um momento para o outro. E diz-lhe que te pode ligar a qualquer hora do dia.

- Reconhece-lhe as conquistas de forma veemente. Não te percas no mundos dos elogios. São coisas distintas e com poderes muito diferentes na construção da auto-confiança e auto-estima do teu filho. O reconhecimento pode ser feito mesmo no fracasso e centra-se na acção do outro, já o elogio não encaixa lá muito bem no fracasso e não só é limitativo como se foca no que a pessoa que o profere sente e pensa sobre o outro. Só para esclarecer: reconhecimento é “Vi o quanto tentaste que isso funcionasse. Imagino que te sintas orgulhoso do esforço que fizeste.”; elogio é “Boa! Estou muito orgulhoso de ti!”.

- Pergunta-lhe como teria resolvido aquela questão que correu mal. Se esse episódio teve consequências que envolvam regulamentos, pergunta-lhe se concorda com esse regulamento. Discute outras possibilidades com ele e, se tiveres um professor disponível para isso, relata-o ao professor. Se o teu filho já tiver uma certa idade, sugere-lhe que seja ele a falar com o professor e a dar-lhe essas opiniões. Faz isto tudo com muita, muita parcimónia.

- Ensina o activismo ao teu filho, com as doses q.b. de realismo e de controlo de expectiva.

- Quando tudo parecer estar a desmoronar, canta “A Pedra Filosofal” com ele e lembra-lhe que isto é uma parte que ocupa muito tempo nas vossas vidas, que tudo passa, mas não vamos só viver na expectativa disso. Não vamos deixar os nossos dias serem dominados por isso sempre.

- Se ele precisar, deixa-o dormir na tua cama. Nunca se é grande demais para a cama dos pais.

-  No fim de cada dia, faz questão que o teu filho vá para a cama com a certeza de que é amado.

No fim de cada dia, faz questão de lembrar o teu filho que ele é provavelmente a pessoa mais corajosa que conheceste na tua vida. Lembra-lhe que ele é diferente, sim, porque é um sobrevivente do desamor. E, ainda assim, sorri todos os dias.

No fim de cada dia, faz questão que o teu filho vá para a cama com a certeza de que é mesmo um ser humano incrível e absolutamente admirável.

Obriga-o a dizer-te que reconhece isso a si próprio.




A ti:

- No fim de cada dia, faz questão de te lembrares que, olha, está tudo bem, tens os filhos a dormir seguros na sua cama.

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